Uma pitada de ficção
Falando sobre histórias que contamos, Joana retorna à newsletter com as fantasias que inventa para deixar sua vida mais interessante. Ou será mesmo invenção?
Um bêbado caminha cambaleante, quase caindo. Calça jeans surrada, blusa de manga longa azul com listras amarelas. Às vezes ele para, sobe a calça, busca alguma coisa nos bolsos. Segue caminhando torto. Atravessa as ruas sem cuidado, por algum milagre não é atropelado.
Alguns passos atrás caminha um senhor, calça social escura, camisa branca, casaco marrom. Abrigado demais para o tempo que faz hoje. Leva uma sacola azul em uma das mãos, a outra no bolso do casaco. Ele está um pouco longe, caminha lentamente, para na esquina. Na outra esquina está o bêbado, chamando alguém em uma lojinha. Pedindo alguma coisa. Os olhos do velho acompanham o bêbado. Mas de repente se cruzam com os de Joana, que caminhava na outra quadra, poucos metros atrás dos dois homens. Ela tomava nota mentalmente de suas características, enquanto arrastava um carrinho de bebê, o filho adormecido dentro, andava devagar, a uma distância segura, pensava. Mas não podia evitar um certo temor.
Mal sabia ela, aquele cruzar de olhares com o senhor foi muito mais perigoso. Naquele momento em que viu a possibilidade de ser reconhecido desistiu de sacar a arma que segurava escondida no bolso do casaco e atirar no bêbado. - Ouvia a voz interior narrando no milésimo de segundo que a troca de olhares durou.
No dia seguinte, saindo de casa, Joana encontra o bêbado, já não bêbado, caminhando normalmente pela mesma rua. Com as mesmas roupas. O que pode ter acontecido aquela noite quando já estava em casa? O velho, a arma, onde passou a noite o bêbado?
Voltando outra vez quase tarde da noite para casa, Joana cruza com um homem, um personagem novo na nossa história. Ele tem um papel na mão, seria um disfarce? Logo que se cruzam ele para, como se estivesse buscando um endereço específico. Estaria observando onde ela vai entrar? Estaria esperando para entrar ao mesmo tempo ou mais tarde? Foi a mando do velho?
Ela entra e não sabe mais nada, se ele realmente buscava outro endereço ou se estava apenas se certificando de onde ela vivia.
Você imagina demais, presta atenção em detalhes inúteis e esquece o que é importante.
Mas quem sabe se estou em perigo? Ou apenas daria uma boa história.
Discutia mentalmente na escuridão do quarto, enquanto fazia o filho dormir. Queria anotar as ideias, mas não tinha nada à mão para tomar nota, então repassava esses pensamentos uma e outra vez, mas não podia deixar de ter outras preocupações.
Preciso ir ao mercado amanhã. Dar banho nas crianças. Marcar aquela consulta…
Em meio aos problemas cotidianos suas ideias vão ficando borrosas e ela adormece.
Terceiro dia. A vida de Joana seguia tranquilamente, sem nada de extraordinário, até então.
Seu esposo lhe diz que não é seguro sair por um tempo, parece que assassinaram um homem no bairro. Baleado. Um bêbado. Devia dinheiro de jogo. O coração de Joana quase para. Queria saber mais a descrição do homem, queria ver uma foto. Podia quase desejar que fosse o seu bêbado; podia imaginar a polícia interrogando-a, daria uma descrição detalhada do homem do casaco marrom e suas suspeitas.
Mas ninguém apareceu. Nem a polícia, nem os bandidos. Talvez foi apenas uma coincidência. Exagerada por uma mente imersa na ficção policial, ansiando um momento extraordinário em sua vida pacata. Talvez não.
Pelas semanas seguintes ao ocorrido Joana ignoraria a natureza dos acontecimentos, relegando à imaginação. Uma mera casualidade. Até acontecer de novo.
Um exercício diário
Em meio a tantos trabalhos de escrita que preciso fazer e concluir, surgiu a ideia desse pequeno conto acima. Porque existem as ideias que vêm quando não desejamos, ou esperamos. Mas que nos arrependemos quando se vão, como se contivessem algo de especial no final das contas. Algo que só imaginamos que talvez estivesse ali, que poderia resultar em uma boa história.
A verdade é que pode acabar parecendo uma história um pouco desconexa, porque parte dela escrevi há muitos meses atrás, observando pessoas e acontecimentos corriqueiros.
Esse, aliás, é um exercício interessante que preciso inserir na minha rotina de escrita, especialmente durante o ano que me comprometi a escrever todos os 366 dias. Mencionei anteriormente1, que se trata de um exercício no qual você escreve acontecimentos do seu dia na forma de uma história, tentando ser, de certa forma, impessoal.
É uma maneira interessante de atentar-se aos detalhes e assim, pouco a pouco, começo a visualizar respostas à questão de como melhorar a escrita, através dos exercícios, do estudo, da leitura.
Houve dias, especialmente em novembro, em que me sentava diante do computador sem uma mínima ideia do que deveria escrever. Pensava fazer qualquer outra coisa. Imaginar dedicar-me um longo período numa mesma história não deixa de trazer o pressentimento de que vou querer abandoná-la em algum ponto do caminho.
Talvez por esse mesmo motivo eu me dou a liberdade de escrever uma ou outra historinha como a de hoje, ou como a do velho George2 com seu pano encardido, ou a de um zelador com um grande sonho3.
Falando sobre exercícios de escrita, lembrei que tenho um livro que li durante a pandemia4 (mais um Borges!) e não tive coragem, naquele tempo, de fazer os exercícios que ele propõe. Será um bom motivo para colocá-lo no topo da lista de leituras - que aliás sigo montando -, colocar em prática e verificar os resultados.
Enquanto escrevo vou descobrindo a melhor maneira de escrever, ou como diz
, se hace camino al andar.Até a próxima.