Há um tempo, enquanto esperava para entrar numa aula na faculdade, estava na varanda de um terceiro ou quarto andar, olhando para um pequeno pátio no andar imediatamente inferior, e foi quando vi um dos zeladores sentado no único degrau em frente a porta do quartinho onde guardavam os equipamentos de limpeza. Ele tinha um caderno e um lápis na mão, escrevia alguma coisa impossível de ler daquela distância.
Apesar de que eu soubesse que a faculdade dá bolsa de estudos para seus trabalhadores - porque eu mesma já vi dois zeladores jovens discutindo sobre algum exame que haviam realizado -, o homem em questão deveria ter mais de 40 anos e a primeira coisa que me passou pela cabeça não foi que ele era um estudante, mas que talvez ele fosse um poeta.
Quem sabe? Talvez ele seja mesmo um estudante. Já tive colegas de curso que tiveram outras profissões anteriormente: um enfermeiro, uma nutricionista, ou mesmo uma mãe, que também era trabalhadora da faculdade, uma mulher que dedicou sua vida a educar os filhos e trabalhar para sustentá-los e, por fim, pôde realizar o sonho de estudar ali.
Ou talvez ele seja mesmo um poeta. Um apreciador da boa comida e do romance. Um leitor ávido de Dumas, Cervantes, Dostoiévski. Talvez ele até entenda um pouco de francês, por que não? Talvez ele trabalhe desde muito novo, naturalmente conseguiu esse trabalho de zelador, mas a proximidade com a cozinha, com aqueles aromas e técnicas despertaram nele um desejo, o desejo de ir além do que ele conhecia. Então ele provou, um pouco do vinho, um pouco do frango cordon bleu, e um bouillabaisse, e uma éclair, e todos os pratos que os professores o convidavam um pouco.
Fez amizade com alguns estudantes, e escutava suas conversas, as discussões sobre as preparações, qual a maneira correta de preparar tal prato, e ele o replicava em sua humilde casa, e economizava seu dinheiro para harmonizar esses pratos com um bom vinho, enquanto assistia ao seu programa favorito de história. Então ele passou a buscar livros históricos na biblioteca, então romances e poemas.
Então ele se apaixonou, alguém da biblioteca? Alguém que ele vira somente uma vez, mas que foi tempo suficiente para trazer à tona toda a poesia que havia lido, fê-lo sentir que havia realmente vivido todas as experiências de todos os poetas conhecidos.
Talvez ele tenha se declarado, eles saíram para jantar algumas vezes, mas algo aconteceu. Uma doença, uma viagem repentina, ela não era daqui. A comida já não tinha sabor, a bebida não o saciava, os livros não o preenchiam e entusiasmavam como antes. Ele precisava colocar num papel tudo aquilo que estava sentindo, onde quer que fosse ele escreveria, era isso ou morrer.
Da mesma forma que a imagem desse zelador escrevendo ficou gravada na minha mente, tão real e tão nítida até hoje, me fazendo imaginar toda uma história com ela, da mesma forma eu imagino as histórias fictícias que escrevo. Parecem muito reais para mim, como um filme passando na minha cabeça.
Eu mencionei há umas semanas que num ímpeto me propus três projetos de escrita com prazo para entrega. É muito comum que me proponha coisas impossíveis quando estou muito empolgada com uma ideia, e depois acabo me arrependendo um pouco. Mas, nesse caso, como estabeleci prazos concretos, também estabeleci datas de “controle” dos projetos, “revisões de avance” e pequenas metas viáveis.
E há uma razão em levar os três projetos ao mesmo tempo, ou várias. Dois são contos, um que eu havia me comprometido há muito tempo em entregar e outro que simplesmente quis fazer com um presente de aniversário para meu esposo. Em ambos, desde o início de cada ideia eu já tinha uma imagem, como uma cena curta de um filme que aparecia na minha mente. Não podia deixar escapar essas ideias.
O terceiro projeto é um romance que eu visualizo como um filme-sonho há muito, mas muito tempo. Anos. Antes da pandemia. Obviamente em todo esse tempo não ficou somente como um sonho, eu preenchi páginas e páginas de uma agenda velha com ideias, descrição das cenas que apareciam na minha mente, pesquisas que fiz e acreditava serem interessantes para a história. Sem falar que é um projeto mais longo, então não é exatamente algo em que esteja me dedicando muito ultimamente.
Agora podem ver como não posso deixar de realizar nenhum dos três. Não concluir uma obra é destruí-la, como já dizia Sertillanges1. E, ainda assim, eventualmente surgem essas outras ideias ou recordações de histórias que se mesclam na minha mente. Alguma terei que destruir, ou deixar que se destrua por conta própria.
É o caso do senhor George que deixamos dormindo na semana passada e assim seguirá por enquanto, e do nosso zelador poeta, que permanecerá poeta apenas neste simples post.
Enquanto isso voltemos para os projetos oficiais, dos quais falarei mais detalhadamente semana que vem. Até a próxima.
A.-D. Sertillanges, A Vida Intelectual, editora Kírion, tradução de Roberto Mallet.