A 'inspiração' é imprevisível, assim como um enjoo. Esse texto veio juntamente com um, e todas as vezes que o leio essa sensação me volta de alguma forma. Mas é uma sensação boa, porque ao mesmo tempo consigo imaginar cada detalhe que se passa ali. A barra de sabão, a água fria, pano encardido, o balcão de mármore... Posso vê-los e senti-los.
*depois do jantar*
Um dos talheres caíra no chão, e com um movimento rápido George tornou a pegá-lo. Isso lhe causara um leve enjoo e uma pontada de dor na cabeça. Tentou se recompor por alguns instantes, e em seguida, com certa leveza, sentou-se na cadeira mais próxima. Sabia que qualquer movimento brusco provocaria vômito. Fechou os olhos e, reclinando-se para trás, esperou aquilo passar.
Levantou-se de repente - não tão de repente a ponto de causar outro enjoo -, e como se nada tivesse acontecido, voltou a lavar a louça.
A barra de sabão de coco amarelada, a água fria escorrendo pelo braço, o pano encardido e úmido sobre o balcão de mármore, tudo naquela cozinha lhe trazia de volta a sensação de enjoo. O único motivo pelo qual não deixou tudo ali mesmo era porque sabia que teria que voltar lá alguma outra hora, sem saber se ia continuar mal ou não. Terminou com prestativa rapidez, retirando o resto da água que ficara na pia com o pano encardido. Até este ponto o enjoo não havia se alastrado significativamente, e George se sentiu aliviado. Abriu uma gaveta abaixo do balcão de mármore e puxou do fundo uma grande garrafa de uísque. Andou em passos curtos até a sala e no caminho pegou um jornal novo esquecido em uma prateleira. Acomodou-se no sofá de três lugares e levou as mãos à cabeça, inspirando com vontade o cheio forte de pano velho e molhado que ficara entre os dedos. Vomitou bem em cima do jornal novo.
'Droga' foi a única coisa que saiu antes que outra leva de bolo estomacal lhe caísse no jornal, e por fim no chão. Recobrou os sentidos, e sentindo-se melhor, preparou-se para limpar aquela nojeira. Sem esquecer de lavar as mãos dessa vez, é claro - ainda que aquele cheiro já não tivesse efeito sobre ele porque já se sentia bem melhor.
Voltou à sala, sentando-se agora em uma grande e velha poltrona verde, repousando os pés grossos e cansados em uma mesinha de madeira antiga. Na verdade tudo naquela casa era velho e usado, inclusive ela própria. Nem George era novo mais, rugas e marcas de expressão profundas ocupavam maior parte em seu rosto, uma barriga mole, grande e flácida faziam parte do que antes era uma "barriga escultural". Grande parte de sua pele estava flácida, suas juntas doíam além do normal e haviam varizes em vários lugares de suas pernas. Já estava com 70 anos, mas ainda aguentava uma boa dose de seu querido Johnnie Walker. Abriu a garrafa e sem pensar duas vezes levou-a à boca, virando de uma vez.
Havia muitas coisas em que George não pensava mais. Não era como antigamente, com uma mente ativa e aberta à novas ideias. Agora ele não lembrava de quase nada. Apenas tinha vagos sonhos de uma moça jovem e bonita, não sabia nada sobre ela, nunca a viu antes. Ou só não se lembrava. Tentava, raras vezes, recuperar fragmentos de memória em sua mente desgastada, ainda que um esforço em vão, mas servia como ocupação em seus dias monótonos e lentos. Quando não estava sonhando, ou tentando lembrar de qualquer coisa, estava imergido em devaneios profundos de sua mente, como se estivesse vagando por ela sem rumo, sem saber se estava vivendo algo real ou imaginário.
Neste momento ele não estava fazendo nenhuma das coisas, havia até mesmo parado de beber o uísque. Olhava para um livro deixado sobre a mesinha, mas não pensava nele. Não conseguia dizer ou pensar o que ele seria, era apenas um objeto que foi largado ali. Ele se esqueceu o nome do objeto, e também não fez questão de se recordar. Não encontrou motivo, nem interesse para tal. Continuou somente a observá-lo, como se seus olhos estivessem presos a ele. Só que não estavam, e ele conseguiu desviar o olhar para a garrafa em sua mão direita. Ele se esquecera o nome garrafa. Não sabia o que estava segurando. Apertou os olhos com algum esforço, e adormeceu.
O conto continua (não, ele não morreu), porém é o suficiente para o post de hoje. Ainda não tenho certeza se a continuação original é boa ou se eu mudaria algo na história. Sequer sei se é um bom início também. Me deixem nos comentários o que vocês acharam e se querem alguma continuação.
Como em todo trabalho sério, esse conto não faz parte de nenhum dos meus três projetos de escrita para esse ano e o próximo, mas me veio a lembrança da sua existência logo que me deparei com os obstáculos nos contos oficiais.
Tenho pensado em trazer mais histórias e contos aqui, dependendo do interesse dos leitores. Preciso também atualizá-los sobre o caminho das pedras que estou seguindo para escrever dois contos ao mesmo tempo. Não sei porque me meto nessas enrascadas. Bom, eu sei, eu gosto da adrenalina e espero a sensação de realização quando puder riscar os projetos como concluídos.
Espero que tenham gostado e até a próxima terça.
Ritmo impecável! Quantidade de ação, descrição e explicação super harmônicos, naturais. Não consigo sequer imaginar outra ordem pra narrativa.
Gostei da forma como iniciou. Foi como se eu (leitora) estivesse sido imediatamente transportada para a cena, como espectadora. Fiquei curiosa e espero o desenrolar da história!