Tempo e Produtividade
Uma nova personagem surge para materializar as angustias diárias de muitos de nós nos tempos atuais.
Joana abriu os olhos, sentia que o corpo ainda estava pesado e cansado, talvez até mais do que quando se deitou. Esticou o braço e tateou no escuro uma mesinha que ficava ao lado da cama. Encontrou o celular.
Esfregou os olhos e desbloqueou inconscientemente a tela e entrou na rede social.
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Um vídeo engraçado de cachorros sendo dublados por humanos. Joana esboça um sorriso.
Um casal faz uma dancinha.
Um comediante faz uma piada sobre política.
Uma jovem faz uma dancinha.
O que não te contam sobre…
Já passaram 40 minutos. O cansaço permanecia e agora os olhos de Joana ardem um pouco. Ela apaga a tela do celular e tenta lembrar os compromissos para o dia. “Preciso comprar aquele curso de comida rápida para ter mais tempo”, pensa.
Ela sai de baixo das cobertas e vai até o banheiro. Durante todo o dia não consegue se livrar dessa sensação de urgência que a rede social lhe deixou, e frequentemente retorna a ela em busca de… algo. Algo que lhe faltava, mas ela nem sabe mais o quê.
Joana busca mais tempo para fazer atividades que ela gosta. Só que ao longo do dia ela perde muito mais desse tempo na internet perdida, sem saber o que ela mesma quer fazer. Joana calhou de querer ser mãe numa época aterrorizante. Os grupos de mães ou até as informações jogadas nas redes sociais parecem uma guerra para ver quem tem o melhor método. Mães de primeira viagem que já não aceitam os conselhos de suas mães e avós, que preferem cortar relações a estragar o futuro brilhante de seus filhos. Mães de primeira viagem que dizem estar seguras de que o método que aplicam é 100% o correto, mas que por detrás das telas também sentem medo e culpa.
Mas Joana não vê o detrás das telas das mães que colocam o jugo pesado em suas costas naquele grupo do WhatsApp. Joana se sente deslocada e cheia de culpa, e como uma adolescente rebelde quer bradar ao mundo que ninguém a compreende. Então logo vê o desabafo de outra mãe sobre suas dificuldades e não deixa de julgá-la, incorporando a atitude de juíza das mães do grupo e dizendo que todo esse drama é desnecessário. Ser mãe é maravilhoso.
“Só não na minha época”, pensa.
Os dias passam, Joana se vê irritada porque queria mais tempo, tempo este que ela malgasta. Se irrita com o filho pequeno porque ele bagunça, é lento, não entende. Ela repete a mesma indicação, ele repete a mesma pergunta uma e outra vez, e outra, e outra e outra vez. Seus dias são lentos.
Joana vive cada dia esperando seu fim. Na soneca da criança ela pode finalmente tomar um café e rolar o feed de notícias. Os cinco minutos que pensou ter passado ali foram na verdade uma hora, o filho acordou. Mas ah, se ela tivesse só mais um tempinho, deveria ter lido aquele livro parado há tanto tempo…
Já é noite, a criança dormiu. Joana pode tomar um banho, colocar seu pijama, escovar os dentes e… rolar o feed de notícias. Ela vê um filme. Mas a falta de tempo é porque não tem a comida pronta para a semana, ou porque não comprou o curso da fulana sobre como ser mais produtiva na própria casa.
Seja 1% melhor. Seja mais informada sobre o que acontece no mundo.
De repente, ela se vê mais uma vez na cama, pronta para dormir. O celular estava na mão e em meio àquela claridade em meio à escuridão do quarto um desconhecido vomitava opiniões incompreensíveis. “O dia passou tão rápido” ela pensa.
Depois de tanto desejar o término da lentidão dos dias, ela lamenta ter sido atendida ao olhar os dois zeros indicados no relógio. Deixa o celular na mesinha e vira-se para dormir.
Num sonho, Joana vê a areia do tempo escorrendo pelos seus dedos, temendo que ela se acabe completamente. Também se lembra da casa da avó, das tias, o cheiro da comida fresca que elas preparavam diariamente. Ela não consegue se lembrar se a comida sobrava, porque a avó sempre preparava tudo no dia seguinte. Ela era pequena demais para perceber se aquela casa tinha tantos defeitos quanto a sua. Via-se imersa em pendências, a roupa acumulando-se para lavar, ou para guardar, a pia da cozinha sempre cheia de louça, ainda que ela conseguisse vencer, no dia seguinte seria repetir os mesmos passos.
“E quando começar a produzir algo de verdade?” Era o que ela pensava nos seus piores dias. Tanto trabalho e ela não o valorizava, dizia que era o mal da nossa era desvalorizar o trabalho de uma mãe, de uma dona de casa. Trabalho este que ela mesma não valorizava, pensava ser entediante fazer as mesmas coisas todos os dias incansavelmente. Joana se esquece que o trabalho de todos é assim, repetitivo, entediante, sempre igual. Ela apenas sente a passagem do tempo diferente agora.
No sonho de Joana ela faz coisas extraordinárias como nos filmes. Então ela acorda, tateia a mesinha no escuro, esfrega os olhos e desbloqueia a tela do celular.
Indicações interessantes
Tenho sido um pouco inconstante no desafio NaNoWriMo, como eu disse num grupo de escrita, parece que tudo acontece quando você tem um prazo a cumprir. Mas tudo bem, eu sempre disse que não levaria o desafio tão a sério. Me ajudou ainda mais estar tranquila ao ver referências a uma forma de escrita um pouco mais lenta e um pouco mais profunda. Espero que ajude alguém a desacelerar um pouco e produzir com mais qualidade.
The Price We Pay For Being Productive - A Philosophical Critique of Hustle Culture -
(vídeo)You deserve to write slow - Dani Abernathy (texto)