Na foto, as mãos da minha filha estão sujas de corante alimentício, sai, mas demora um pouco. Fiz um “giz lavável” com amido, água e corante. Pintamos a calçada e então joguei água e tudo desapareceu, restaram apenas as memórias e as fotos desse dia.
Ontem, andando pela mesma calçada meu filho pergunta pelo pincel e as cores “atul, yoyo, vedi” (azul, rojo, verde). É o que ele se lembra ao olhar para a calçada, enquanto eu me lembro ao revisitar a galeria de fotos. Posso recordar cada detalhe ao ver apenas a foto dessa mãozinha: preparando a tinta, acomodando-os à sombra, a alegria, a sujeira nas mãos, nas roupas; jogando água em tudo, o sol na minha pele, o cheiro e o sabor da mexerica.
Não, talvez o sabor não, minha memória não é tão precisa, apenas sei que era uma boa mexerica, não era amarga e não tinha sementes.
Será que eu me lembraria de eventos corriqueiros se não estão documentados de alguma forma? Algumas coisas sim, detalhes, por mais insignificantes que possam parecer para outros, memórias que se fixaram com sentido para mim ― ainda que eu não saiba explicar muitas vezes. Uma conversa num parque, um sonho recorrente, o nascimento dos meus filhos, a mão de uma colega de trabalho que me fazia pensar na minha irmã ― puxa, como há detalhes em desconhecidos que às vezes nos fazem lembrar de quem amamos por estar longe.
Me lembro nitidamente de ter meu filho pequeno nos meus braços e me perguntar se recordaria esses momentos simples, e de prometer que eu viveria cada etapa devagar, com atenção, para não perder nada. Hoje eu o vejo, vejo o quanto cresceu, fico imaginando como será quando estiver maior, adolescente, homem. Como ele se lembrará desses momentos? Que sentimentos essas fotografias evocarão em seu ser?
Olho para as imagens de pessoas que não conheci na estante da avó do meu esposo, não consigo imaginar completamente que tipo de vida levavam. Inclusive os conhecidos não se pode adivinhar o passado vendo-os agora, suas maneiras, suas falas, seus gestos. As histórias que ouço parecem ser sobre outras pessoas. Um tio brincalhão fica mudo de repente à recordação de um nome familiar, o que estará refletindo nesse breve momento? Só quem viveu seu passado de perto consegue compreendê-lo, não ousam falar mais a respeito.
Levam segundos para que a avó comece a falar sobre cada um daquela foto, desse dia em especial, segundos para trazer à memória os fatos, ou segundos para recuperar o fôlego no turbilhão de sensações que uma simples imagem traz à tona. Simples para quem?
Uma moça jovem, nos seus trinta anos, em vestido de festa, rindo. Apenas a memória revela todas as camadas de sentimentos que ela carrega: uma mãe solteira, uma filha dedicada, um coração partido por um equívoco do destino (e falta de comunicação) ― uma história trágica, quase de novela: o homem pelo qual está apaixonada também estava apaixonado por ela, mas ele acredita que ela o esqueceu e formou outra família ao vê-la com tantas crianças pequenas… mal sabia ele que eram apenas seus sobrinhos. Alguém que jamais chegarei a conhecer, mas que ainda vive na recordação que essa imagem traz.
E o que dizer de fotografias de desconhecidos a cuja família não posso perguntar “e como ele(a) era?”, gente que se foi há muito tempo, gente que não vive perto, pessoas com quem não temos contato direto. Imagens tão bem preservadas que despertam a curiosidade sobre como viviam.
Terminando a minha releitura de “O ano da leitura mágica”, de Nina Sankovitch, resolvi pesquisar pela autora no google. Encontrei seu website , seu instagram, e nesse último tem uma foto que ela publicou da mãe vestida em trajes típicos da Bielorrússia nos anos 1960. Para mim, um rosto familiar, me faz lembrar uma conhecida. Para Nina, toda uma vida de lembranças, de cuidados, de lutas e sofrimentos, vividos e contados; o horror da guerra, a fuga para um lugar novo cheio de esperança, criar três filhas num país estrangeiro, o amor pelos livros compartilhado com a família.
Memórias que posso ler e preencher uma pequena lacuna no meu imaginário, ainda de maneira imperfeita, por não conhecer a Europa, nem sequer ter tido contato com pessoas que vivenciaram a Segunda Guerra. Ela é mais um personagem em meio à tantas histórias.
O quão parecidas são nossas ideias em relação à mesma descrição de um personagem? Quando não é possível sequer ver uma imagem, temos de adivinhar e tentar chegar o mais próximo possível de quem o autor estava imaginando ao escrever aquelas palavras… Até as melhores descrições criam imagens distintas dependendo das experiências de cada leitor.
Ah, isso é reflexão para outro dia.