"Brum brum" ordena meu filho, sentado em seu carrinho amarelo. Às vezes é cansativo estar puxando para lá e para cá enquanto ele não alcança os pedais. Vendo o quão encantado ele ficou ao herdar o carrinho, vale a pena o esforço para criar histórias que perdurarão em sua memória ― espero.
Esse carrinho era de um primo, cujas peças foram trazidas da Rússia há muito tempo. Meu esposo e seus primos têm a lembrança de brincar nesse carrinho. Ele não era amarelo naquele tempo, quem sabe essa não seja a única diferença entre o passado e o presente, somente quem o viu antes sabe.
Agora vai estar na memória do meu filho, talvez dos netos, ainda que de uma maneira distinta da memória dos adultos. Difícil que esse carrinho se deteriore com o tempo, ao menos não da mesma maneira como os carrinhos de hoje em dia, os brinquedos de plástico.
Há menos de um ano compramos um fusca, seu cheiro é igual ao cheiro da minha máquina de escrever. Fico pensando se as coisas antigas tinham esse mesmo cheiro antes, ou cheiram assim porque estão velhas. A quem eu poderia perguntar? Será que as pessoas realmente se lembram? Ou será que alguém vai dizer que “o cheiro era melhor” sem saber explicar exatamente como e ficarei com essa dúvida eternamente?
Às vezes parece que resta uma nostalgia sem o encantamento do passado. Não venho dizer como as coisas eram melhores antes, até porque não acho que tenho idade o suficiente para começar a usar essa frase. Mas talvez, justamente por não ser tão velha, eu me lembro bem do encantamento que tinha quando era criança, a maneira como eu olhava para o mundo. Uma mistura de inocência e curiosidade, cada pequena descoberta parecia incrível. Mesmo aquelas que já haviam sido descobertas por outros, não me importava.
Recentemente eu escutei sobre a ideia de que inventaram a infância como conhecemos agora. Não cheguei a ler o autor que descreve isso e me limitei a ter outra questão não respondida: como era a infância? Não há 50 anos, quem sabe até mesmo não há 100 anos, mas antes disso. Tenho o conhecimento comum de que muito cedo as pessoas eram obrigadas a trabalhar. Mas e o encantamento? A primeira vez que um bebê vê e começa a identificar o que existe ao seu redor, as pessoas, as coisas, os costumes, as feições, alegria, tristeza, empolgação, raiva. Como era?
Grande parte dos registros que temos são de adultos endurecidos com a vida, poetas e escritores seguem ao menos com certa sensibilidade diante do mundo, mas eu ainda sinto que algo falta. Onde estão as histórias das crianças? Onde está sua memória? Ou todos nós estamos fadados a esquecer esse encantamento pela própria natureza das coisas?
Apenas por ser mãe em pleno 2024 eu tenho contato com teorias que ensinam como conectar-se com as crianças, como entendê-las, ver como elas veem o mundo. Mesmo não concordando ao 100% com muitas teorias modernas, vejo a necessidade em um mundo em que ainda muitos adultos esquecem seu passado, ou tentam esquecê-lo, devido a dureza com que foram criados.
Me pergunto se um dia eu perderei esse encantamento que me interessa tanto manter. Ao mesmo tempo, rio comigo mesma dos caminhos que minhas escolhas me levaram, tornar-me aquilo que sempre sonhei quando era criança. Nem todos têm essa sorte.
Não vou bradar aos quatro ventos “Libertem-se de seus trabalhos entediantes e sigam seus sonhos!” porque também tenho os pés no chão. Mas a vida não pode ser apenas ganhar dinheiro e gastá-lo com pequenos prazeres, seriados, um sushi no final de semana.
O que vocês queriam ser quando crianças? Quais escolhas os levaram aos caminhos percorridos até agora? Vamos lá, não sei o que você faz da vida, mas será que não tem um tempinho para reviver aquele sonho antigo? Nem que seja por meio da leitura, onde podemos viver um pouco de vários sonhos, várias vidas.
Espero seus comentários e até a próxima.